quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Primata

sempre apreciaste os meus lábios simiescos
mas não os meus maus hábitos. 
também terias alguns, 
tão insalubres como os meus, 
porém mais silenciosos,
de que desviavas a atenção
para me vigiares.
e nem eu os via.

esse teu cuidado 
feito de olhos ataviados de fome
fazia-me sorrir, 
descuidada do que dizias.
amei-o sempre 
mesmo sem o ver,
adejante sobre a minha boca, 
até começar a feri-la 
com os afiados lamentos 
que, sem notares, soçobraram o amor. 

agora vive emboscado na minha escrita, 
um mau hábito pretérito e futuro
tão meu e primitivo 
como o desassossego que me sitia as noites 
e te apartou de mim.

sei que não tem fim o teu não regressar
e apenas caminhas para a luz.
que abraçar primatas, 
ainda que ensinem os melhores beijos, 
está hoje fora do teu alcance.

terias de aprender a fé antiga das árvores 
e escutar a cegueira da natureza,
que continua a parir erros, 
descuidada, 
como eu sorridente, 
uma filha ilegítima de deus.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Abrir a janela

choro a mãe do Odair, 

como antes a do Paulo, 

sim, a minha, 


e a falta do teu colo.


então vejo-te, 

um recorte perfeito no branco da paisagem,

e logo retomo a marcha,

a fingir-me nova.


drama a mais nunca fez bem. 

antes café, vinho, pão com manteiga 

e as imagens da memória, 

fixadas em palavras, 

sobreviventes das procelas, do tempo, da saudade, 

outra vez a luzir.


só me apetece abrir a janela,

enxugar as lágrimas,

esquecer.


e pôr a mão de fora 

para o teu amor pousar.