terça-feira, 30 de julho de 2024

Hoje vivo

com os teus olhos eloquentes
o teu sorriso inconstante 
a tua pele insurrecta
agitaste-me o coração, 
amigo íntimo do sol,
e adentraste-me rumo ao âmago 
pelos trilhos molhados do desejo.
foste marcando tudo
gestos decididos,
indicador em riste, 
palavras vulcânicas,
e queimando o que tocasses, 
até cobrires de terra 
a minha preciosa estrela interior.

e eu esqueci-me de viver.

árida,
já não me restavam sonhos, 
nem gestos, nem música,
mas tinha ainda a argamassa fértil do silêncio para moldar 
e um corpo que se movia.

como a sombra só desenha onde há luz,
atirei-me à escuridão para me salvar.

hoje vivo.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Apagão

apago dos versos 
o verbo amar,
o nome amor 
e a variante, amante

e pouco resta
além do rumor da ausência,
um fio de tempo,
o frio de existir na treva.

a escrita é um apagão. 

domingo, 21 de julho de 2024

Quatro vezes três

a poesia dança-me nos dedos,
ritmada como funk.
e obriga-me a ouvi-la
com estes olhos de espanto.

quimera impercetível,
devora-me por dentro,
qual bailarina prematura
a reter-me o pensamento.

dela nasce lume, orvalho,
brisa com e sem aroma.
não sei como me apanha
se já não lhe pertenço.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Por minutos

para que eu te amasse
teve o Viriato que bater num romano,
o primeiro Afonso que correr com os espanhóis
e o terceiro com os mouros.

para que tu me amasses
tiveram as naus que furar os mares,
os monarcas que cair
e os capitães que marchar até ao Carmo.

para que nos amássemos
o meu pai teve que seduzir a minha mãe,
o teu que convencer a tua
e alguém que inventar a informática.

mas
uma vez que não te amo,
nem tu a mim,
tudo isso terá sido em vão.

ou nem tudo.
por minutos o nosso encontro serviu
para darmos um nome à esperança.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Sem resposta

quando o espelho me pergunta

quantos sonhos tenho por viver

chego-me à frente sem dizer nada

e sorrio-lhe.


ele devolve-me a boca arqueada às avessas, 

os sinais familiares

as velhas rugas de expressão, 

redobradas interrogações.

e reconhece-me.


sabe quem soube sou:

pronuncia o meu nome,

mas não todas as idades que tenho em mim,

apenas aquela que os meus olhos conseguem ver,

nutrida de dores,

desvairada de mágoas,

ainda pulsante e amiúde feliz.


as outras guarda 

para o que está por vir e eu desconheço.


não sei que lhe diga.


os meus lábios tremem,

a minha testa engelha-se 

e as horas passam.