quinta-feira, 8 de maio de 2025

Maldição

o que aprendes sobre o amor 
quando atacas os meus demónios
quando ignoras o meu choro
e fazes de conta que o ciúme é ironia 
e verdade a ira
?
o que aprendes sobre o amor 
quando não me ouves dormir
quando o teu silêncio me traz de volta
e te emudece as queixas
e te humedece o vazio mais uma vez  
?
o que aprendes sobre o amor
na distância
?
quando bebes a luz e respiras
quando paras numa montra a ver o teu reflexo
levando pela mão outra mão 
a memória pela trela
?
à noite sonhas comigo.
pela manhã a novidade traz-te à tona da vida
e treme-te o sexo
lambes os lábios 

mas
– maldição
!
ainda te lembras.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Este velório de anos

primeiro foi a pele.

teria havido indícios. 

na conversa fluida,

um escritor citado, uma memória de escola, um par de piadas, os risos.

e na esquina da rua,

um vagar curioso, uma troca de nomes, um par de passas, os charros.

até na pista de dança,

um movimento aleatório, um menear de ombros, um passo repetido, as voltas.


mas foi primeiro a pele 

a ponte para o reconhecimento.


abaixo, um rio corria.

águas profundas de orvalhos antigos 

à mercê das correntes do tempo.


acima, traves de névoa bolorenta.

vapores de insanidade cansada

a pôr termo aos tremores do corpo.


e adiante,

onde mais dói

um amor sem salvação

a desaguar neste velório de anos.


quando desabarem os pilares

e ficarem só ossos

sem pele, sem carne,

deixaremos de sentir?

sábado, 26 de abril de 2025

Dúvida e caos

é verdade toda essa alegria quando viajas nas ternas graças do mundo novo? é loucura todo esse desejo quando cavalgas pelos ardentes bosques por estrear? e esse empenho, quando rezas e essa certeza, quando dás bastam-te para desdizer o passado? eu prossigo toda dúvida e caos trémula, perdida, embotada a viver de mãos abertas prontas para agarrar qualquer rio que passe a dormir de coração fechado para não morrer sempre que me visitas os sonhos. mas que a tua silhueta me impressione não posso evitar. e perco a noite num espasmo dançante. pela manhã borboletas nos meus olhos batem as asas descontroladamente. cegam-me, estonteadas, a pedir-me para voar até aos teus braços. como se nunca te tivessem revisto.

terça-feira, 25 de março de 2025

Luxo

a tua ausência renova-se.

linhas de luz desequilibram

este desdizer dos ecos do futuro 

e eu duplico-me solitária

arrepiada no espelho 

à mercê do teu sopro desfeito.


por dentro das dúvidas, 

das perguntas enoveladas na memória, 

crepitam ainda palavras aos pares

como braços 

viventes no vazio

e apesar do vazio.


em decomposição

como nós

dobram-se a si mesmas, 

ecos flamejantes do que fomos 

mas tão pouco dizem  

como quando 

muito antes de ti

eu brincava com elas 

só porque o branco da folha me inquietava.


acostumada à morte,

noutra dimensão 

ainda me perco nesse rasto de bocas ougadas

que guardo no espaço do silêncio.


e à noite  

deixo a luz acesa para te esquecer

no limiar do sono em que o meu corpo se esfuma


abro-me à queda, una e refletida

no arco dos teus ombros

sobre o papel.


é um luxo. 

sempre apreciei o movimento que me deita.


quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Inverno perene

estico as meias grossas até aos joelhos, 
escondo a cabeça na colcha, as mãos no peito, 
e penso no calor que fazias quando à noite me abraçavas 
e a minha fome crescia na medida exata do teu sossego.

mastigava o vazio e depois de muitas voltas à procura do sono
lá caía naquela sonora inconsciência que tanto desprezavas. 

acordava horas mais tarde, saciada. 
e tu tinhas gelado e coçavas a ansiedade 
como quem se despede do mundo. 

derramavas lágrimas e queixas e eu engolia os gritos, 
de regresso à ação com um buraco no estômago.

o que poderia dizer que te servisse,
se te já tinha tocado um par de dias
e jamais a minha voz ouviste com clareza?

ao fim de tantos despertares repetidos, 
num inverno perene, a mesma fome,
o presente tomou a forma inexprimível do medo
e eu perdi de vez o sentido de falar do futuro.

desconfiavas das palavras e afinal
foi o silêncio que deu cabo de nós.