segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Teima

tinhas uma colecção de fotografias à cabeceira, rostos e rostos guardados sob o candeeiro de leitura, entalados entre contos e caixas de pulseiras.
nas noites de solidão pegavas neles e tentavas recordar-lhes os nomes sem veres o verso da imagem. os nomes, as idades, os dias que passaram contigo. os gostos. os sonhos. os frutos. as músicas partilhadas. os poemas embrulhados. pedaços dessa sonâmbula irrealidade que te permitia aceitar o tempo e suportar a vida.

depois suspiravas, uma e outra vez, antes de verificares se estavas certa. e o espanto esboçava-se nos teus lábios, quase desenhando um sorriso neles, ao perceberes que os baralhavas.

e que a memória podia ser tudo o que quisesses,
pois não passa de ficção.

eu apareci-te de olhos maravilhados,
mas voltados para dentro.
até me extraíres para o mundo, fui metade do que hoje sou, na cegueira feliz e parcimoniosa de quem sabe que apenas tem o que merece.

mas aprendi contigo a sair de mim.
e depois converti-me ao tamanho de um cartão de crédito.
como paulo maria pedro
apolo vénus e joão. a pulsar no papel mate.
inane, insana, colorida, intencional.
carne lúcida na translúcida pele
que aos teus dedos um dia me vestiu.

ao fim de todo este tempo,
eu ensinei-te apenas a fingir que a vida é uma canção.
lição pobre, mais uma mentira para guardares com as fotografias.
mais uma mentira
toda ligeira, não mais que uma teima,
gananciosamente a desejar-se verdadeira.

como aquela de que o amor é um prémio
e não somente um órgão vital.

1 comentário:

João Villalobos disse...

Bom dia. Já tem link no «Flamingo». Bom trabalho e bjs