quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Recomendação

arranja o cabelo como se fosses a uma festa
pinta os lábios, perfuma-te,
prepara um cocktail.
liga a meia luz, escolhe um disco e dança,
sempre por esta ordem,
e come a vida, que ela é cortês.

depois podes sentar-te no banco ornamentado,
as pernas recolhidas à espreita das redes,
o penteado desfeito transbordando o caos,
a fumar um cigarro.
não te percas de vista
e conta até trezentos e três.

deixa os minutos escorrer pelos dedos 
até ao soalho, sem futuro,
e não feches a mão em caso algum,
nem a seques.
na solidão mais desarrumada
o tempo ainda precisa de movimento e liquidez.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Aquela que amavas

eis-me, aquela que amavas, 

diariamente enlutada,

a girar incessante no redemoinho da saudade.

aquela que, quando à tua frente,

às cegas, encandeada pela tua luz,

preferiu voltar-se para dentro 

e isolar-se num cortejo de sombras

que para sempre a conduziu ao vazio. 


nele decidida se dissipa, 

ecoando os mesmos mil erros 

que sabiamente apontaste,

escondida num corpo que já ninguém deseja.

e escreve e reescreve o glossário da perda 

com palavras gastas, cada vez mais inúteis,

que lhe roem a língua com os seus próprios dentes.


eis-me, aquela que amavas,

no caminho resoluto de uma morte repetida.


a pior morte é esta, a que ainda respira

mas já só caminha para trás.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Estou a um dia

na tua presença quero que o dia não acabe
e se é assim pressinto 
que em breve cantarás no meu poema.

para já falas e, enquanto ouço, 
há uma borracha branca 
sobre a noite
que me apaga a chuva da memória 
e empurra das minhas palavras, 
para longe da folha,
para longe de casa,
a musa de outrora.

na tua ausência quero que brilhes ainda
e se é assim pressinto 
que em breve verei um arco-íris nos teus olhos.

para já só me atrevo a prender-te 
num verso simples 
à procura de continuação, 
com o casaco vestido
e a boca fechada,
mas estou a um dia 
de te roubar as reticências e te pôr a rimar.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Lobos

seguras no copo a uma distância segura da minha sede.

por um momento a tua mão não vacila, 

mantendo-me a salvo da ebriedade,

e eu deslizo para fora dos meus sonhos, 

satisfeita com a vida que me dás

neste pequeno exílio pacífico

em que me desconheço.


é quase uma felicidade palpável,

esta, em que brincamos aos casais 

dia após dia

e nos deitamos sem vontade

noite após noite

e comemos de olhos fixos na televisão 

com o volume no máximo

para não ouvirmos os lobos a arranhar a porta.


não dizemos a solidão

ainda que ela persista

nos nossos corações curados do vazio 

e não contamos aos amigos

do que morremos,

como tu ficaste arrumada e eu sóbria, 

as duas ao espelho, de corpos fechados no amor

gloriosas neste deixarmos de ser nós

para sermos maiores, as duas em silêncio e desfiguradas

diante do incandescente amanhã que se aproxima.


assim permaneceremos

até que a tua mão vacile diante da minha sede 

e eu recaia, de volta a mim mesma

e à velha floresta cercada de ruínas

onde durmo com os lobos 

e oiço estas vozes sussurrantes

que só me ditam poemas se não olhar para ti.


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Raízes

metáforas são subtilezas tecidas a negro,  criadas para vestir as palavras normais, cansadas de apenas nomear o mundo. 

carregadas de cores, fios, sentidos, 

já não sabem o que são

e, como gente que se esconde e disfarça, 

jamais podem ser encontradas

por quem as procurar.


é essa a grande doença da poesia:

o que lhe dá poder mágico

é também a sua inevitável perdição. 


o amor, como calculas, tem a mesma raiz.

e no subtexto do meu coração, 

profundo como árvore, 

interior como poema, 

não há como medir raízes.


e se as desenterrares, perguntas,

a viajar no verso do André, 

inspirado traje de trauma, medo, preconceito teimoso.


a planta corre o risco de morrer, respondo. 


pois que morra. tudo o que é vivo renascerá, 

com sorte mais humano, rebates tu. 


não suspeitas que é de mim que falo.

nem que morrer mais uma vez

pode extinguir-me para sempre.