terça-feira, 29 de julho de 2025

Reinado breve

já não acreditava em lugares proibidos.

tinha tirado o avental, 

despido a frieza, 

e parado de andar pelo mundo 

a morder o lábio de inocência fingida. 


estava a viver um grande amor

gracioso, puro e justo

pela primeira vez

e já não era nova

mas ainda pensava que as dores

do coração a fechar-se

eram só imaginação.


avancei sem temor

e descuidadamente

pelo caminho estreito

onde éramos corpos a um só ritmo, 

almas em rimas perfeitas,

sentidos únicos rumo ao céu.

(porque o medo da perda não fala

quando se tem beijos garantidos a cada dia 

e tantas noites de carne roubada à fome.


mas certo é que o incerto desatou a gritar.

rasgou-me a língua, 

assombrou-me o balanço.


e desse tempo 

em que sonhar era permitido e o futuro possível

restou só o vestígio de um reinado breve

feito de verdade 

forrada de ilusões.


o grande amor morreu depressa afinal

mas ainda estou aqui.


e sigo sem acreditar em lugares proibidos.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Época balnear

um inesperado encontro à porta do elevador.

a voz conhecida,

os olhos de sempre,

o corpo em forma, 

a indiferença reforçada,

o vago constrangimento,

a raiva desdobrada em mágoa,

a sede de vingança.


as palavras claras

e a resposta trôpega. 


a novidade:

o pássaro tatuado no braço

pelo lado de dentro,

tributo aos antepassados,

qual dívida de sangue, 

em contraciclo com os factos, 

uma vida alheia à vocação famíliar. 


o resultado:

a nostalgia de volta, 

uma espécie de culpa, 

a confusão, a dúvida, 

a angústia colada à pele 

como suor que nenhuma água lava.


à noite,

torno a dar banho às lágrimas,

arrefeço gota a gota e

lentamente

volto a endurecer.

 

está reaberta a época balnear. 

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Maldição

o que aprendes sobre o amor 
quando atacas os meus demónios
quando ignoras o meu choro
e fazes de conta que o ciúme é ironia 
e verdade a ira
?
o que aprendes sobre o amor 
quando não me ouves dormir
quando o teu silêncio me traz de volta
e te emudece as queixas
e te humedece o vazio mais uma vez  
?
o que aprendes sobre o amor
na distância
?
quando bebes a luz e respiras
quando paras numa montra a ver o teu reflexo
levando pela mão outra mão 
a memória pela trela
?
à noite sonhas comigo.
pela manhã a novidade traz-te à tona da vida
e treme-te o sexo
lambes os lábios 

mas
– maldição
!
ainda te lembras.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Este velório de anos

primeiro foi a pele.

teria havido indícios. 

na conversa fluida,

um escritor citado, uma memória de escola, um par de piadas, os risos.

e na esquina da rua,

um vagar curioso, uma troca de nomes, um par de passas, os charros.

até na pista de dança,

um movimento aleatório, um menear de ombros, um passo repetido, as voltas.


mas foi primeiro a pele 

a ponte para o reconhecimento.


abaixo, um rio corria.

águas profundas de orvalhos antigos 

à mercê das correntes do tempo.


acima, traves de névoa bolorenta.

vapores de insanidade cansada

a pôr termo aos tremores do corpo.


e adiante,

onde mais dói

um amor sem salvação

a desaguar neste velório de anos.


quando desabarem os pilares

e ficarem só ossos

sem pele, sem carne,

deixaremos de sentir?

sábado, 26 de abril de 2025

Dúvida e caos

é verdade toda essa alegria quando viajas nas ternas graças do mundo novo? é loucura todo esse desejo quando cavalgas pelos ardentes bosques por estrear? e esse empenho, quando rezas e essa certeza, quando dás bastam-te para desdizer o passado? eu prossigo toda dúvida e caos trémula, perdida, embotada a viver de mãos abertas prontas para agarrar qualquer rio que passe a dormir de coração fechado para não morrer sempre que me visitas os sonhos. mas que a tua silhueta me impressione não posso evitar. e perco a noite num espasmo dançante. pela manhã borboletas nos meus olhos batem as asas descontroladamente. cegam-me, estonteadas, a pedir-me para voar até aos teus braços. como se nunca te tivessem revisto.

terça-feira, 25 de março de 2025

Luxo

a tua ausência renova-se.

linhas de luz desequilibram

este desdizer dos ecos do futuro 

e eu duplico-me solitária

arrepiada no espelho 

à mercê do teu sopro desfeito.


por dentro das dúvidas, 

das perguntas enoveladas na memória, 

crepitam ainda palavras aos pares

como braços 

viventes no vazio

e apesar do vazio.


em decomposição

como nós

dobram-se a si mesmas, 

ecos flamejantes do que fomos 

mas tão pouco dizem  

como quando 

muito antes de ti

eu brincava com elas 

só porque o branco da folha me inquietava.


acostumada à morte,

noutra dimensão 

ainda me perco nesse rasto de bocas ougadas

que guardo no espaço do silêncio.


e à noite  

deixo a luz acesa para te esquecer

no limiar do sono em que o meu corpo se esfuma


abro-me à queda, una e refletida

no arco dos teus ombros

sobre o papel.


é um luxo. 

sempre apreciei o movimento que me deita.


quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Inverno perene

estico as meias grossas até aos joelhos, 
escondo a cabeça na colcha, as mãos no peito, 
e penso no calor que fazias quando à noite me abraçavas 
e a minha fome crescia na medida exata do teu sossego.

mastigava o vazio e depois de muitas voltas à procura do sono
lá caía naquela sonora inconsciência que tanto desprezavas. 

acordava horas mais tarde, saciada. 
e tu tinhas gelado e coçavas a ansiedade 
como quem se despede do mundo. 

derramavas lágrimas e queixas e eu engolia os gritos, 
de regresso à ação com um buraco no estômago.

o que poderia dizer que te servisse,
se te já tinha tocado um par de dias
e jamais a minha voz ouviste com clareza?

ao fim de tantos despertares repetidos, 
num inverno perene, a mesma fome,
o presente tomou a forma inexprimível do medo
e eu perdi de vez o sentido de falar do futuro.

desconfiavas das palavras e afinal
foi o silêncio que deu cabo de nós.


quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Recomendação

arranja o cabelo como se fosses a uma festa
pinta os lábios, perfuma-te,
prepara um cocktail.
liga a meia luz, escolhe um disco e dança,
sempre por esta ordem,
e come a vida, que ela é cortês.

depois podes sentar-te no banco ornamentado,
as pernas recolhidas à espreita das redes,
o penteado desfeito transbordando o caos,
a fumar um cigarro.
não te percas de vista
e conta até trezentos e três.

deixa os minutos escorrer pelos dedos 
até ao soalho, sem futuro,
e não feches a mão em caso algum,
nem a seques.
na solidão mais desarrumada
o tempo ainda precisa de movimento e liquidez.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Aquela que amavas

eis-me, aquela que amavas, 

diariamente enlutada,

a girar incessante no redemoinho da saudade.

aquela que, quando à tua frente,

às cegas, encandeada pela tua luz,

preferiu voltar-se para dentro 

e isolar-se num cortejo de sombras

que para sempre a conduziu ao vazio. 


nele decidida se dissipa, 

ecoando os mesmos mil erros 

que sabiamente apontaste,

escondida num corpo que já ninguém deseja.

e escreve e reescreve o glossário da perda 

com palavras gastas, cada vez mais inúteis,

que lhe roem a língua com os seus próprios dentes.


eis-me, aquela que amavas,

no caminho resoluto de uma morte repetida.


a pior morte é esta, a que ainda respira

mas já só caminha para trás.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Estou a um dia

na tua presença quero que o dia não acabe
e se é assim pressinto 
que em breve cantarás no meu poema.

para já falas e, enquanto ouço, 
há uma borracha branca 
sobre a noite
que me apaga a chuva da memória 
e empurra das minhas palavras, 
para longe da folha,
para longe de casa,
a musa de outrora.

na tua ausência quero que brilhes ainda
e se é assim pressinto 
que em breve verei um arco-íris nos teus olhos.

para já só me atrevo a prender-te 
num verso simples 
à procura de continuação, 
com o casaco vestido
e a boca fechada,
mas estou a um dia 
de te roubar as reticências e te pôr a rimar.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Lobos

seguras no copo a uma distância segura da minha sede.

por um momento a tua mão não vacila, 

mantendo-me a salvo da ebriedade,

e eu deslizo para fora dos meus sonhos, 

satisfeita com a vida que me dás

neste pequeno exílio pacífico

em que me desconheço.


é quase uma felicidade palpável,

esta, em que brincamos aos casais 

dia após dia

e nos deitamos sem vontade

noite após noite

e comemos de olhos fixos na televisão 

com o volume no máximo

para não ouvirmos os lobos a arranhar a porta.


não dizemos a solidão

ainda que ela persista

nos nossos corações curados do vazio 

e não contamos aos amigos

do que morremos,

como tu ficaste arrumada e eu sóbria, 

as duas ao espelho, de corpos fechados no amor

gloriosas neste deixarmos de ser nós

para sermos maiores, as duas em silêncio e desfiguradas

diante do incandescente amanhã que se aproxima.


assim permaneceremos

até que a tua mão vacile diante da minha sede 

e eu recaia, de volta a mim mesma

e à velha floresta cercada de ruínas

onde durmo com os lobos 

e oiço estas vozes sussurrantes

que só me ditam poemas se não olhar para ti.


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Raízes

metáforas são subtilezas tecidas a negro,  criadas para vestir as palavras normais, cansadas de apenas nomear o mundo. 

carregadas de cores, fios, sentidos, 

já não sabem o que são

e, como gente que se esconde e disfarça, 

jamais podem ser encontradas

por quem as procurar.


é essa a grande doença da poesia:

o que lhe dá poder mágico

é também a sua inevitável perdição. 


o amor, como calculas, tem a mesma raiz.

e no subtexto do meu coração, 

profundo como árvore, 

interior como poema, 

não há como medir raízes.


e se as desenterrares, perguntas,

a viajar no verso do André, 

inspirado traje de trauma, medo, preconceito teimoso.


a planta corre o risco de morrer, respondo. 


pois que morra. tudo o que é vivo renascerá, 

com sorte mais humano, rebates tu. 


não suspeitas que é de mim que falo.

nem que morrer mais uma vez

pode extinguir-me para sempre.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Primata

sempre apreciaste os meus lábios simiescos
mas não os meus maus hábitos. 
também terias alguns, 
tão insalubres como os meus, 
porém mais silenciosos,
de que desviavas a atenção
para me vigiares.
e nem eu os via.

esse teu cuidado 
feito de olhos ataviados de fome
fazia-me sorrir, 
descuidada do que dizias.
amei-o sempre 
mesmo sem o ver,
adejante sobre a minha boca, 
até começar a feri-la 
com os afiados lamentos 
que, sem notares, soçobraram o amor. 

agora vive emboscado na minha escrita, 
um mau hábito pretérito e futuro
tão meu e primitivo 
como o desassossego que me sitia as noites 
e te apartou de mim.

sei que não tem fim o teu não regressar
e apenas caminhas para a luz.
que abraçar primatas, 
ainda que ensinem os melhores beijos, 
está hoje fora do teu alcance.

terias de aprender a fé antiga das árvores 
e escutar a cegueira da natureza,
que continua a parir erros, 
descuidada, 
como eu sorridente, 
uma filha ilegítima de deus.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Abrir a janela

choro a mãe do Odair, 

como antes a do Paulo, 

sim, a minha, 


e a falta do teu colo.


então vejo-te, 

um recorte perfeito no branco da paisagem,

e logo retomo a marcha,

a fingir-me nova.


drama a mais nunca fez bem. 

antes café, vinho, pão com manteiga 

e as imagens da memória, 

fixadas em palavras, 

sobreviventes das procelas, do tempo, da saudade, 

outra vez a luzir.


só me apetece abrir a janela,

enxugar as lágrimas,

esquecer.


e pôr a mão de fora 

para o teu amor pousar.


segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Arco-íris

amei a vida intensamente, 

com todas as zonas cinzentas e as cores do arco-íris.


fui homem e mulher, criança vezes sem conta, 

e quase mordo a velhice agora que me despeço, 

eu mesma e outros ao mesmo tempo, 

à passagem deste verão de todos os frutos a escorrer-me pelo queixo.


todas as coisas que vivi são só minhas e vão comigo. 

deixo cartas, versos

e um caixote de fotografias, 

beatas no cinzeiro, 

vinhos na garrafeira, 

casa nenhuma, 

algum dinheiro no banco

e lições de amor em três ou quatros corações

que hão de lembrar-me 

com o meu sorriso fácil, 

as minhas danças noturnas,

os discos, os livros, as canetas,

tudo espalhado 

para ainda dar trabalho 

e continuar a ser depois de ser

quando já não for senão cinza 

e uma coleção de gestos, jeitos, gostos e feições 

nos corpos dos meus filhos.


amei muito.

amei mal e distraidamente,

amei bem sem reconhecimento, todos os dias.

e não me importo.


nunca quis aplausos senão na cama, à beira dos sonhos, 

o meu palco sem género, sem máscara, sem roupa, sem nome.

apenas humanidade 

e fim.


terça-feira, 30 de julho de 2024

Hoje vivo

com os teus olhos eloquentes
o teu sorriso inconstante 
a tua pele insurrecta
agitaste-me o coração, 
amigo íntimo do sol,
e adentraste-me rumo ao âmago 
pelos trilhos molhados do desejo.
foste marcando tudo
gestos decididos,
indicador em riste, 
palavras vulcânicas,
e queimando o que tocasses, 
até cobrires de terra 
a minha preciosa estrela interior.

e eu esqueci-me de viver.

árida,
já não me restavam sonhos, 
nem gestos, nem música,
mas tinha ainda a argamassa fértil do silêncio para moldar 
e um corpo que se movia.

como a sombra só desenha onde há luz,
atirei-me à escuridão para me salvar.

hoje vivo.