terça-feira, 28 de abril de 2020

Branca de Neve

diariamente,
na mais perfeita solidão,
ao espelho mágico perguntava,
espelho meu, espelho meu,
porque é que todos os outros são
mais felizes do que eu?
e o espelho,
cumprindo a sua natureza de coisa inanimada,
embora mágico, incapaz de mentir,
não respondia.

passaram-se semanas, meses.
e ele calado.

uma vez esteve quase.
o reflexo embaciou-se,
diluindo-lhe as rugas,
reconstruindo-lhe o sorriso de menina,
dando-lhe nova vivacidade à pele,
como um filtro do Instagram.
e ela ficou ainda mais bela,
com aquele rosto de vinte anos
e o olhar calejado dos quarenta.
mas o silêncio persistiu.

ano a ano, passou-se uma década
em que
ela drenou os lagos dos seus pensamentos chorosos,
arranjou sete amigos de ocasião na floresta e, para se sentir útil,
arrumou-lhes a casa,
foi com eles à pesca e numerosas vezes ao supermercado,
tricotou cachecóis,
regou flores, abraçou animais, plantou árvores
e descodificou o enredo das missas
e os mistérios da confeitaria.
ainda falou com fantasmas e aprendeu o nome dos pássaros
e a medir a humidade do ar
e a entender as suas próprias comoções.
mas nunca abriu a porta
a ninguém.

certo dia o espelho,
fazia já tantos anos que lhes perdera a conta
e tanto tinha feito sem reparar nisso
que já era incapaz de confiar em magias,
sem que ela nada perguntasse,
quebrou o silêncio:
podes acreditar num amor encantado, imortal,
maior que todas as alegrias precárias,
sujeitas à passagem do tempo.
é certo que nada é mais humano que a solidão
e nenhuma princesa alguma vez foi feliz para sempre,
mas, com a porta fechada, nem um dia.

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