domingo, 19 de abril de 2020

Navegável

não sou do tamanho da minha tristeza,
mas mais pequena,
grão de terra da herdade imensa,
poeira vocal no cântico dos fantasmas
que me trazem crianças pela mão
e se misturam nas teias de nuvens suspensas dos tectos.

ainda não é a hora, dizem.
e eu digo, que o desejo não se consuma
nem o fulgor da noite me disperse. e tu dizes,
isso não é o que quero dizer,
sei bem do que preciso
e nada me isolará do futuro.

as plantas contra a morte distraem-me da fome,
no pensamento ardem-me,
imagino-as florestas góticas,
de ramos desmanchados e folhas acumuladas
como leitos a abraçar os nossos corpos,

agiganto-me a imaginar, enquanto me
esqueço que o prazer existia,
e o surpreendente amor, em fios de cabelos tecidos,
se ajustava ainda à medida da minha dor.

os mendigos mendigam,
os alegres alegram,
os herdeiros herdam,
os tristes enfadam, eu sei.
e sou todos ao mesmo tempo,
temor nenhum
porque já fui o teu suspiro,
rica só em presságios.

hoje em lágrimas navegável,
cozinho duas vezes por dia
como as mães extremosas de antigamente,
simulacro de uma sinfonia doméstica em busca de sentido,
sem rumo.

fosse eu maior que a minha tristeza
e não deixaria rasto no universo.

dava-te novas vagas de gestos musicais
e o que precisasses.

então poderíamos ser felizes.

mas há quem prefira conclusões à tona da água.

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