sábado, 25 de abril de 2020

Revolução

por esta altura, arreliada por não ganhares o feriado,
porque é importante o trabalho,
a subsistência, o pé de meia,
talvez planeasses descer a avenida de braço dado comigo
e fotografar os homens e as mulheres da liberdade,
escravos dos juros bancários,
das contas da luz
e da responsabilidade familiar,
suposta fonte de máximas alegrias,
deslumbrada com a tenacidade deles,
embora definidos,
pouco mais,
pelo prazer de uma cerveja na esplanada do bairro
e mais uma vitória do benfica na televisão.

é o que agora mais falta lhes faz,
muito mais que o cravo na lapela e a grândola na voz.

por esta altura, provavelmente temerias mais uma noite em claro,
a ouvir-me dormir em tumulto inexplicável,
praguejando contra o vinho e a minha fraqueza.

todavia, sem o esperarmos ou querermos,
o curso dos planos foi interrompido,
a cidade esvaziada,
os sinais mediúnicos baralhados,
o sussurro do espontâneo
vertido numa janela de grades invisíveis,
que num pestilento ápice nos congelou.

por isso, e devido a este incontrolável escrevinhar,
meu pão de cada dia,
por esta altura já gastei
inteiramente
o caderninho vermelho que me deste
com pensamentos avulsos,
que jamais conhecerão o prelo
ou o retorno em pé de meia que idealizaste.
são perfeitamente imprestáveis
como esta mania de viver os dias um a um,
qual gato caseiro,
acreditando que a tudo tem direito
menos a caçar para comer.

por esta altura,
sem ti,
uma chaga reaberta,
cada hora é uma revolução calada.

bato na mesa,
ergo-me, visto o casaco, calço os sapatos e digo,
agora é que vou lá, seja feita a minha vontade,
tenho pernas para andar
e lábios para beijar
e mãos para tocar.

mas logo a seguir esmoreço.
dispo o casaco, descalço os sapatos, respiro fundo
e de peito em sangue
arranco às entranhas o que sinto,
despejando todo o tumulto no copo.

por esta altura, bebo-te em silêncio.

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