terça-feira, 25 de junho de 2024

Estes meus versos

estes meus versos 

tão normais

não são capazes de abraçar.

os meus braços sim.

contudo nem uns nem outros 

te chegam.

são fracos, quase mudos

mal se sentem.


como as feministas  

noutro tempo

foram praticamente silenciados 

pelas dores diárias

e pelos apertos da culpa, 

mesmo sendo 

tão normais.


porque o normal, 

numa mulher, 

é ser branda, calma, comedida,

dentro das estribeiras, 

não fazer barulho. 


olha os vizinhos, 

murmuram estes meus versos

tão normais 

como um abraço ausente.


eu consigo ouvi-los

tu não.

domingo, 16 de junho de 2024

As lágrimas não perdoam

abri a porta e ela entrou de rompante em mim desprevenida como nunca. 

e aquele lugar arejado onde eu morava

ficou inundado de amarguras dela,

esperanças dela, 

águas dela,

medos dela, 

sons indeléveis.

encolheu tanto, 

fechado ao mundo, bafiento

que as paredes me encheram de pontapés

e o tecto baixou e me apertou 

como os braços de um agressor furtivo, 

de que instintivamente qualquer mulher, 

a sós numa rua escura, 

numa floresta noturna, 

numa cidade deserta, 

não hesitaria em fugir.


ainda tenho o chão molhado para rastejar, dormir, fazer flexões. 

já não serve para espalhar livros, 

mas não importa: 

apodreceram há muito, incapazes de flutuar. 


as lágrimas não perdoam.


quinta-feira, 13 de junho de 2024

Skincare

repetiu duas vezes aquele nome
que não era o meu
colado à palavra amor
e com tanta ternura que quis acreditar
que era a mim que chamava.

deixei-me ficar mais uns minutos
e quando começou a respirar pesado
puxei enfim o braço
largado sob a nuca dela
desde os últimos beijos,
peguei na roupa
e vesti-me em silêncio
junto à porta da rua.

não saí ilesa.

caminhei então pelas ruas desertas,
dobrei as esquinas
e tripliquei-me em tremores,
segurando a mão que mais tremia com a outra,
e mandei-a parar.

quase obedeceu.

os olhos também tremiam sobre as rugas fundas
e a boca, mais ainda,
descaindo como sempre contra a minha vontade.

mudei de passeio e continuei,
como se tivesse destino,
estugando o passo até encontrar aquele único banco de jardim
que não cheirava a vinho nem a merda nem a mentiras
nesta alvorada de santo antónio.

aí abri a página inicial
e chorei de júbilo ao descobrir que naquele instante
alguém me lia na coreia do sul.
não sei o seu nome, mas poderia repeti-lo
duas vezes
ou muitas
colado à palavra amor.

e jamais o trocaria por skincare,
embora esteja mesmo a precisar.


terça-feira, 4 de junho de 2024

Uma forma de existir

chamavas às frutas 
presentes de deus 
e às flores 
ilhas de luz
no tom solene de quem desvenda 
os grandes mistérios do universo
e desenhavas monstros 
com pernas de inseto e rostos humanos, 
idênticos aos dos teus pais.

eu escrevia o livro fundamental 
movida a fumo, vinho e calafrios, 
com novas rugas na boca, 
que te escondi, 
enquanto me extinguia.

escrever é uma forma de existir, dizia então.
como não escrever, dizias tu, 
e deitavas-te, alheia a tudo.

depois levantou-se a febre. 
tu perdeste o traço e eu o verbo,
caminhaste para longe 
e eu mudei de cama 
para me esquecer que morri.

hoje grito o teu nome 
para dentro da fronha da almofada
e coso-a com linhas mudas. 

aos meus sonhos, pelo menos,
não voltarás a escapar.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

E depois do adeus

por vezes ainda saio de casa, 

para caminhar,

esticar as pernas, 

arejar os ossos,

tonificar os músculos.


dizem-me que é um remédio para esta tristeza funda, 

tal como praticar o convívio, 

rir, misturar-me nas coisas,

desafiar o intelecto.


mas os cheiros do mundo agoniam-me 

e o ruído constante impele-me a recolher de novo 

ao idílico planeta 

do pensamento doméstico.


concentro-me nele e caio

sem amparo 

no teu abraço gelado como a morte.


encaracolando-me, 

arfante, culpada,

no espaço exíguo entre o meu corpo encolhido 

e o teu colo hostil,

dou lastro à memória dos nossos instantes felizes, 

na realidade para sempre perdidos

no martírio da saudade.


e aqui me deixo ficar,

imóvel, só, vazia,

até amanhã, depois de amanhã, depois da vida, 

como se soubesse quem sou, ou fui, ou serei, 

e que há futuro em mim 

depois do amor, 

depois de nós, 

depois de ti.


sexta-feira, 24 de maio de 2024

Pássaros nos olhos

naquele tempo trazias pedras da beira-mar para decorares as janelas 
e pássaros nos olhos para não me veres voar. 

dessa cegueira à seguinte era apenas uma estação. 
tu sabias 
e mesmo assim deixaste-a passar. 

eu tinha as asas presas à nossa casa de sonhos 
e amava-te nela como se fosse real, 
com os sentidos embotados 
pelas tuas certezas e as minhas contradições. 
estarei sempre aqui e lá fora, dizia, 
enquanto podava as orquídeas e enchia o copo mais uma vez, 
ébria já, fechada em mim, surda ao teu desejo. 

mas não mentia. 

outra estação passou e eis-me no mesmo lugar 
a olhar para o teu pedregoso silêncio. 

sei como ele é certo e justo e merecido 
e por isso abraço-o como os oceanos aos rios 
as mães aos bebés 
a terra às raízes. 

já não há espaço nas janelas 
nem pássaros que fiquem parados 
à espera 
até que eu me decida a habitar-te. 

mas ainda há tempo para voltares a ver.